Em 2 de maio de 1970, um Boeing 707-441 da VARIG pousou no México com a seleção brasileira a bordo — a primeira delegação a chegar à Copa do Mundo. Não era apenas um voo. Era uma missão. A equipe traria consigo não só jogadores, mas a esperança de um país que ainda vivia sob o regime militar. E, sobretudo, a proteção de Pelé, cujo nome já era sinônimo de glória — e também de risco. Ameaças de sequestro pairavam no ar. A segurança era tamanha que, na noite de 3 de maio, quando ele desembarcou no voo 814 da VARIG, o aeroporto estava cercado por agentes. Nada era deixado ao acaso.
Medidas de segurança que pareciam paranóia — e que salvaram a conquista
A comissão técnica, liderada por Mário Jorge Lobo Zagallo, adotou regras que, à primeira vista, pareciam exagero. Nenhum ônibus mexicano foi usado. Os carros da seleção, trazidos do Brasil, foram os únicos a circular. A água? Só a filtrada ou mineral trazida daqui. O povo mexicano, inicialmente, se sentiu ofendido. "Eles acham que a nossa água é suja?", questionavam. Mas o clima mudou rápido. O carisma dos jogadores, o ritmo do "batuque" que ecoava nos corredores do hotel, a alegria contagiante de Jairzinho, Rivellino e Tostão — tudo isso derreteu qualquer desconfiança. "O povo mexicano caiu nas graças do Brasil", disse anos depois Raul "Willy" Gomez, ex-atacante mexicano, à Veja. E não foi só simpatia. Foi admiração genuína.A final que virou lenda: 4 a 1 no Azteca
A final, em 21 de junho de 1970, às 12h do horário local, no Estádio Azteca, na Cidade do México, foi mais que um jogo. Foi um evento histórico. 107.412 pessoas lotaram as arquibancadas. A arbitragem ficou a cargo do alemão Rudolf Kreitlein. A Itália abriu o placar com Boninsegna, mas Pelé respondeu com um cabeceio perfeito. No segundo tempo, Gérson ampliou, Jairzinho marcou seu 11º gol na competição — um recorde que ainda não foi batido — e, no fim, Carlos Alberto Torres fechou com o gol mais bonito da história das finais: uma jogada coletiva de sete passes, iniciada por Pelé, que serviu a Tostão, que devolveu a Carlos Alberto para o chute final. "A mais bela jogada coletiva de uma final de Copa", disse o comentarista inglês David Coleman na transmissão da BBC. O Brasil venceu por 4 a 1. Tricampeão. A Taça Jules Rimet era definitivamente brasileira.
O retorno: pista invadida, lágrimas e o Rei
Em 23 de junho, o mesmo Boeing 707-441 da VARIG pousou em Brasília. A multidão invadiu a pista. Gritavam "Brasil!" e, em seguida, "Pelé!". O primeiro a aparecer na porta foi Zagallo — o único homem a vencer como jogador (1958 e 1962) e como técnico. Atrás dele, Carlos Alberto Torres, carregando a Taça Jules Rimet. O governador do Distrito Federal, Hélio Prates da Silveira, abraçou cada jogador. Mas foi com Pelé que ele se demorou mais. No Palácio do Planalto, o ditador militar da época, em lágrimas, declarou: "Pelé é o verdadeiro Rei". E não foi retórica. Era verdade. Na Alvorada, os jogadores receberam cheques de premiação. Ao chegar ao hotel, Pelé entrou primeiro, cercado por quatro seguranças. Ado, o goleiro, foi o mais perseguido pelas torcedoras. O hotel ficou lotado. Alguns pagavam 115 cruzeiros novos por diária só para dormir perto dos campeões.
O Maracanã celebra: 155 mil e o fim da era de ouro
Em 30 de setembro de 1970, o Estádio do Maracanã recebeu mais de 155 mil pessoas — entre os registros, variam entre 139 mil e 140 mil — para um amistoso contra o México. O Brasil venceu por 2 a 1, com gols de Jairzinho e Tostão. A escalação foi quase a mesma da final: Félix (Ado), Carlos Alberto Torres, Britto, Piazza, Everaldo, Clodoaldo, Gérson (Paulo Cezar Caju), Rivellino, Jairzinho, Pelé e Tostão, todos sob o comando de Zagallo. Era o último grande momento coletivo daquele time. Pelé, já consagrado, não precisava mais provar nada. Mas jogou como se ainda estivesse em busca de algo. E o público sentiu. Aquele jogo não era só uma festa. Era um adeus à era mais pura do futebol brasileiro.Frequently Asked Questions
Por que a seleção brasileira trouxe água do Brasil para a Copa de 1970?
A comissão técnica, incluindo o preparador físico Cláudio Coutinho, temia contaminação e doenças gastrointestinais que poderiam comprometer o desempenho da equipe. A água local era considerada de qualidade duvidosa, e o risco de um jogador adoecer antes da final era inaceitável. A medida, inicialmente vista como desrespeito pelos mexicanos, foi essencial para manter a saúde da delegação intacta até a conquista.
Quem foi o responsável pela segurança de Pelé durante a Copa?
A segurança de Pelé foi coordenada por uma equipe conjunta da seleção e de agentes brasileiros enviados especialmente para a missão. Além de guardas pessoais, havia vigilância constante nos hotéis e nos deslocamentos. A preocupação era real: havia relatos de grupos que planejavam sequestrá-lo para exigir resgate ou uso político. O próprio Zagallo admitiu, anos depois, que a pressão era tão grande que, em certos momentos, sentiu que Pelé era mais um prisioneiro que um jogador.
Por que o Boeing 707-441 da VARIG foi escolhido para a missão?
O Boeing 707-441 era um dos aviões mais modernos e confiáveis da frota da VARIG na época. O código "441" indicava que era originalmente encomendado por outra entidade, mas foi repassado à companhia aérea brasileira. Com capacidade para transportar toda a delegação, incluindo equipamentos e suprimentos, era o único avião capaz de fazer o trajeto Brasil-México sem escalas, garantindo conforto e segurança. Além disso, a VARIG era a principal companhia aérea nacional — uma escolha simbólica e prática.
Qual foi o impacto da conquista de 1970 na cultura brasileira?
A vitória em 1970 não foi apenas esportiva — foi identitária. Em plena ditadura militar, o tricampeonato uniu o país em um momento de repressão. Pelé se tornou o símbolo de uma nação que queria ser vista com orgulho no mundo. O futebol passou a ser visto como um instrumento de diplomacia. O "batuque" da seleção, a alegria, o estilo — tudo isso foi usado como contraponto à imagem autoritária do governo. A conquista foi, de fato, um alívio coletivo para milhões de brasileiros.
Por que o gol de Carlos Alberto Torres é considerado o mais bonito da história das finais?
O gol foi resultado de uma sequência de sete passes perfeitos, envolvendo seis jogadores brasileiros, com Pelé iniciando e finalizando com um toque de desvio. Não houve erros, nem excessos. Cada jogador estava no lugar certo, no momento certo. A jogada foi executada com calma, inteligência e estilo — uma manifestação do futebol-arte que o Brasil defendia. O próprio técnico Zagallo disse, anos depois, que aquele gol "não foi planejado, foi inspirado".
O que aconteceu com a Taça Jules Rimet após a conquista de 1970?
A Taça Jules Rimet foi entregue definitivamente ao Brasil por ter conquistado o tricampeonato. Em 1983, foi roubada da sede da CBF no Rio de Janeiro e, apesar de uma busca intensa, nunca foi recuperada. Acredita-se que tenha sido derretida e vendida como ouro. Em 1984, a FIFA criou a Taça FIFA World Cup, a que conhecemos hoje. A Jules Rimet, portanto, é um símbolo perdido — mas sua lenda permanece viva, especialmente no Brasil.

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